– Seria a CIDE-Royalties, de fato, uma CIDE?
Apesar da pergunta retórica, tendo em vista que, na prática, a CIDE-Royalties é considera uma Contribuição Interventiva no Domínio Econômico, há inúmeros elementos nela que podem levar ao questionamento de sua real natureza jurídica.
Tanto é assim, que o próprio STF pautou para o mês de maio o Tema 914, que discute a constitucionalidade da CIDE-Royalties à luz dos artigos 5º, 149, 150 e 174 da Constituição.
Essa discussão no STF é importante e merece grande atenção por parte de empresas que firmam contratos internacionais de transferência de tecnologia, porém, para além do que é discutido no Supremo, há outro elemento envolvendo esse tributo que merece reflexão: a sua natureza jurídica, ante o critério de materialidade da Lei n. 10.168/2000, o art. 4º do Código Tributário Nacional e o art. 167, inc. IV da Constituição Federal.
E é exatamente esse o objetivo pretendido com esse artigo, trazer pontos de reflexão sobre que espécie de tributo é a CIDE-Royalties.
Pois bem, antes de adentrar à questão em si, é importante fazer uma breve abordagem sobre a vinculação dos tributos à atividade do Estado.
Ao pensar o sistema tributário da Constituição de 1988, o constituinte, tomando por base o sistema já existente na Carta de 1967, criou duas espécies de tributos: os vinculados, e os não-vinculados.
Como o nome sugere, os tributos passaram a poder ser classificado com base na existência ou inexistência de vínculo com determinada atividade estatal.
Por essa classificação, seriam vinculados aqueles tributos cujo fato gerador implica, necessariamente, em uma atividade desenvolvida pelo Estado, como é o caso das taxas (identificadas pelo exercício do poder de polícia ou pela prestação de um serviço público específico e divisível, prestados ou posto à disposição do contribuinte) e das contribuições, de melhoria (onde a atuação estatal decorre da prestação de uma obra pública capaz de beneficiar ou valorizar o imóvel do contribuinte) ou, na hipótese deste artigo, interventivas (em que os recursos são destinados à melhoria e incentivo do setor econômico que recolhe a contribuição).
Resumindo bem a questão, temos a lição de saudoso professor Geraldo Ataliba1, no seguinte sentido:
Examinando-se e comparando-se todas as legislações existentes – quanto à hipótese de incidência – verificamos que, em todos os casos, o seu aspecto material, das duas, uma: a) ou consiste numa atividade do poder público (ou numa repercussão desta) ou, pelo contrário; b) consiste num fato ou acontecimento inteiramente indiferente a qualquer atividade estatal. (…) Em outras palavras: a materialidade do fato descrito pela hipótese de incidência (aspecto material da hipótese de incidência) de todo e qualquer tributo ou é uma (1) atividade estatal ou (2) outra coisa qualquer. Se for uma atividade estatal o tributo será (1) vinculado. Se um fato qualquer, o tributo será (2) não vinculado. […] Tributos vinculados são as taxas e contribuições especiais e tributos não vinculados são os impostos […].
Uma Contribuição, para ser considerada como interventiva no domínio econômico, deve, portanto, possuir como característica principal um fato gerador diretamente vinculado com atividade realizada por órgão do Poder Público responsável pelo desenvolvimento de ações interventivas ou por administrar fundos decorrentes dessa intervenção do Estado na Economia.
Complementando esse ponto, o também saudoso Hugo de Brito Machado2, defende que a finalidade interventiva das CIDE’s se manifesta de duas formas:
[…] (a) Na função da própria contribuição, que há de ser um instrumento da intervenção estatal no domínio econômico, e ainda, (b) na destinação dos recursos com a mesma arrecadados, que só podem ser aplicados no financiamento da intervenção que justificou sua instituição.
E em arremate, ainda conclui:
[…] a lei que institui uma contribuição de intervenção no domínio econômico há de definir sua hipótese da incidência no estreito campo da atividade econômica na qual vai atuar como instrumento de intervenção estatal. E há de indicar expressamente a destinação dos recursos a serem arrecadados, que evidentemente não pode ultrapassar o âmbito da atividade interventiva.
Aqui chega-se, então, à primeira premissa fundamental da questão: a União poderá instituir uma CIDE quando o fato gerador da contribuição for uma atividade do Estado e houver, concomitantemente, a expressa intervenção na atividade econômica e a destinação vinculada e exclusiva dos recursos arrecadados à atividade interventiva.
Trazendo essa premissa para os elementos que constituem a CIDE-Royalties, veremos que, em que pese possa existir a intervenção em algumas atividades econômicas, o seu fato gerador não ocorre pelo desempenho de uma atividade estatal, tampouco a destinação dos valores arrecados está vinculada à intervenção no domínio econômico dos contribuintes.
Em relação ao fato gerador, é necessário realizar uma breve análise do art. 2º, caput e §2º da Lei n. 10.168/2000:
Art. 2o Para fins de atendimento ao Programa de que trata o artigo anterior, fica instituída contribuição de intervenção no domínio econômico, devida pela pessoa jurídica detentora de licença de uso ou adquirente de conhecimentos tecnológicos, bem como aquela signatária de contratos que impliquem transferência de tecnologia, firmados com residentes ou domiciliados no exterior.
[…]
§ 2o A partir de 1o de janeiro de 2002, a contribuição de que trata o caput deste artigo passa a ser devida também pelas pessoas jurídicas signatárias de contratos que tenham por objeto serviços técnicos e de assistência administrativa e semelhantes a serem prestados por residentes ou domiciliados no exterior, bem assim pelas pessoas jurídicas que pagarem, creditarem, entregarem, empregarem ou remeterem royalties, a qualquer título, a beneficiários residentes ou domiciliados no exterior.
Pela Lei, deverão recolher a CIDE-Royalties todas as empresas que: i) realizem o ato de deter a licença de uso ou aquisição de tecnologias; ii) firmem contratos que impliquem na transferência de tecnologia, ou que tenham por objeto serviços técnicos e de assistência administrativa prestados por residentes ou domiciliados no exterior e; iii) paguem, creditem, entreguem, empreguem ou remetam royalties, a qualquer título, a beneficiário residente ou domiciliado no exterior.
Não há, na hipótese, nenhuma atividade desempenhada pelo Estado. Pelo contrário, o critério material que dá ensejo ao fato gerador é um ato praticado exclusivamente pelo contribuinte do tributo dentro de sua liberdade de contratação e negociação.
Evidentemente que a destinação dos valores pode servir de argumento para sustentar a atividade interventiva, no entanto, a forma como o montante arrecado é distribuído revela outra dúvida se há uma atividade econômica específica que é afetada.
E isso se verifica nos próprios termos dos artigos 1º da Lei n. 10.332/2001 e do Decreto n. 4.195/2002, que regulamentam a destinação da arrecadação nos seguintes termos:
Lei n. 10.332/2001
Art. 1o Do total da arrecadação da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, instituída pela Lei no 10.168, de 29 de dezembro de 2000, serão destinados, a partir de 1o de janeiro de 2002:
I – 17,5% (dezessete inteiros e cinco décimos por cento) ao Programa de Ciência e Tecnologia para o Agronegócio;
II – 17,5% (dezessete inteiros e cinco décimos por cento) ao Programa de Fomento à Pesquisa em Saúde;
III – 7,5% (sete inteiros e cinco décimos por cento) ao Programa Biotecnologia e Recursos Genéticos – Genoma;
IV – 7,5% (sete inteiros e cinco décimos por cento) ao Programa de Ciência e Tecnologia para o Setor Aeronáutico;
V – 10% (dez por cento) ao Programa de Inovação para Competitividade.
Decreto n. 4.195/2002
Art. 1o Quarenta por cento dos recursos provenientes da contribuição de que trata o art. 2o da Lei no 10.168, de 29 de dezembro de 2000, serão alocados ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FNDCT, em categoria de programação específica denominada CT-VERDE AMARELO, e utilizados para atender ao Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para o Apoio à Inovação.
Assim, apesar de ter sido instituída com o importante objetivo de fomentar o desenvolvimento de tecnologias nacionais, a forma como os valores são distribuídos deixa a dúvida se a CIDE-Royalties representa uma intervenção do Estado em uma atividade econômica específica, ou em várias outras áreas de pesquisa e conhecimento.
Essa posição não é uma visão isolada.
Autores como Sacha Calmon Navarro Coelho e André Mendes Moreira3 explicam que essa generalidade das Leis n. 10.168/2000 e 10.332/2001 e dos Decretos regulamentadores implica em uma inexistência de campo econômico específico em que se inclua a CIDE-Royalties.
Segundo os autores, esse alto número de áreas pode estimular pesquisas nos ramos da biologia, área jurídica e/ou ciências exatas, diferentes áreas do conhecimento que têm “o condão de influenciar setores mais diversos da economia, desde a agricultura de subsistência até a exportação de aviões comerciais.”
O que se instituiu com as Leis 10.168/2000 e 10.332/2001 não seria, portanto, exatamente uma intervenção do Estado no domínio econômico, mas sim um programa de incentivo ao desenvolvimento tecnológico brasileiro custeado erroneamente por uma contribuição exigida das pessoas jurídicas que contratam serviços e tecnologias do exterior.
Com isso, e retomando a diferenciação anteriormente feita entre tributo vinculado e não-vinculado e observando os detalhes expostos até aqui, a presente contribuição não parece revelar uma intervenção do Estado em um determinado segmento econômico, mas, sim, um tributo incidente sobre o fato gerador de obtenção ou licenciamento de uso de tecnologia, contratação de serviços técnicos ou de assistência administrativa que impliquem na transferência de tecnologia de residentes ou domiciliados no exterior.
Sendo assim, o que se tem não é um tributo vinculado à atuação estatal, mas um não-vinculado, incidente sobre um fato gerador próprio realizado por determinados grupos empresariais.
Tal questão se torna ainda mais necessária de análise, quando vistos em conjunto com dois elementos que impossibilitam a exigência de um tributo não-vinculado sobre as operações de remessa ao exterior a título de contratação de tecnologia.
O primeiro desses elementos é o art. 4º do Código Tributário Nacional, que estabelece o fato gerador como fator determinante da natureza jurídica do tributo, sendo irrelevantes a denominação e demais características adotadas em lei e a destinação legal do produto de sua arrecadação. In verbis:
Art. 4º A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la:
I – a denominação e demais características formais adotadas pela lei;
II – a destinação legal do produto da sua arrecadação.
Portanto, se a CIDE-Royalties possui fato gerador não-vinculado à atividade estatal, estaremos diante não de uma contribuição, mas de um imposto.
E estando diante de um imposto, não se pode desconsiderar a existência do princípio da não afetação, firmado pelo art. 167, inc. IV da Constituição Federal e que veda vinculação da receita de impostos a órgão, fundo ou despesa:
Art. 167. São vedados:
[…]
IV – a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo;
Poderia se dizer que a destinação dos valores seria referente ao ensino, mas conforme se vê na Lei n. 10.332/2001, há programas específicos, e não necessariamente ligados ao ensino, que recebem os valores recolhidos a título da CIDE-Royalties.
Resumindo toda a questão, o cenário seria o seguinte:
1º ao não representar uma intervenção pelo Estado na atividade econômica pagadora do tributo, a CIDE-Royalties não se vincula a atividade estatal;
2º por não se vincular a uma atividade estatal, seria um tributo não-vinculado;
3º sendo um tributo não-vinculado, o fato gerador a denota como imposto e;
4º denotando-se como imposto, os valores oriundos de sua arrecadação não poderiam ser direcionados a fundos específicos.
Por óbvio, nenhum desses aspectos desconsidera a importância do investimento em pesquisa e tecnologia, no entanto, a União não pode, sob esse pretexto, exigir de contribuintes tributos que não se amoldam às determinações da Constituição Federal e do Código Tributário Nacional.
Finalmente, a CIDE-Royalties, em sua ideia, é boa, mas a forma como foi instituída sucinta dúvidas quanto a sua constitucionalidade. Caberá, portanto, ao STF decidir sobre o tema e (espera-se) dar um ponto definitivo à questão, fazendo valer a segurança jurídica.
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