Confira o artigo do advogado Pedro Henrique Muniz, integrante do Núcleo Tributário e Planejamento Fiscal da Lobo & Vaz Advogados Associados, publicado no portal Consultor Jurídico.
A regulamentação do ICMS-Difal no manicômio jurídico-tributário brasileiro
“No Brasil, como em qualquer outro país, ocorre o mesmo fenômeno patológico-tributário. E mais testemunhas são desnecessárias, porque todo os juristas que vivem a época atual — se refletirem sem orgulho e preconceito — dar-se-ão conta que circulam nos corredores dum manicômio jurídico-tributário”.
É com essa frase que o memorável professor Alfredo Augusto Becker [1], fazendo menção ao jurista italiano Lello Gangemi, inaugura sua obra sobre teoria geral do Direito Tributário.
Ao se verificar o cenário envolvendo a cobrança do diferencial de alíquota do ICMS, o ICMS-Difal, não é difícil perceber que, além de brilhante, o professor Alfredo Augusto Becker era também um visionário. Ou são os aspectos tributários que continuam iguais no Brasil.
Para entender melhor por que a colocação do professor cai tão bem para essa situação, é importante contextualizar os fatos que levaram à cobrança do ICMS-Difal em 2022.
Pois bem, criado pela Emenda Constitucional nº 87/2015, e previsto atualmente no artigo 155, §2°, inciso VII, da Constituição Federal e artigo 99 dos ADCT, o diferencial de alíquota do ICMS é uma medida com objetivo de tornar mais justa a arrecadação dos estados, quando a operação envolver a circulação de bens ou serviços de um estado para o outro.
Por essa medida, caberia ao estado de destino da mercadoria o valor correspondente entre a diferença de sua alíquota interna e a alíquota interestadual.
Porém, no início de 2021, o Supremo Tribunal Federal julgou, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.469 e do Recurso Extraordinário nº 1.287.019, que seria necessária a edição de lei complementar para estabelecer as regras gerais para o diferencial de alíquota do ICMS (Difal) quando o bem ou serviço se destinar a consumidor final não contribuinte, não bastando apenas a edição de um convênio do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), como ocorria até então.
A decisão, que passou a produzir efeitos a partir de 2022, analisou uma série de cláusulas do Convênio Confaz nº 93/15, que era o responsável por regulamentar aspectos relacionados ao ICMS-Difal e, ao final do julgamento, fixou a seguinte tese:
“A cobrança do diferencial de alíquota alusiva ao ICMS, conforme introduzido pela emenda EC 87/2015, pressupõe a edição de lei complementar veiculando normas gerais”.
Assim, diante do impacto da medida para os estados, o Congresso Nacional passou a debater o tema, dando início à tramitação do Projeto de Lei Complementar nº 32/2021, que tinha como objetivo de regulamentar a cobrança do ICMS-Difal para 2022 e foi aprovado no Senado no mês passado, vindo a ser sancionado pelo presidente da República e transformado na Lei Complementar nº 190/2022 neste mês.
Além das regras gerais regulamentando a questão, o artigo 3° da Lei resolveu, momentaneamente, a maior controvérsia sobre o tema até o momento, mencionando de forma expressa o artigo 150, inciso III, alínea “c”, que estabelece o princípio da anterioridade nonagesimal e veda a cobrança de tributos instituídos ou majorados antes de 90 dias da publicação da lei que tenha instituído ou aumentado os tributos.
Com isso, em um primeiro cenário, o contribuinte passou a ter uma segurança legal para que a cobrança do Difal sobre suas operações permanecesse suspensa pelos 90 dias subsequentes à publicação da lei, ou seja, até o início de abril de 2022.
Contudo, essa segurança logo foi abalada, pois o Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz) levantou outra incerteza ao defender que, por não se tratar de criação ou majoração de tributo, a regulamentação aprovada não estaria sujeita aos princípios das anterioridades anuais e nonagesimais.
Externalizando essa posição, e inaugurando o segundo cenário sobre a cobrança, o Confaz publicou o Convênio ICMS nº 236/2021, que estabeleceu os procedimentos a serem observados na cobrança do Difal e, em sua cláusula 11ª, determinou que a produção dos efeitos desse convênio serão contados a partir de 1º janeiro.
A publicação desse convênio acrescenta um novo elemento ao cenário já nebuloso da cobrança do ICMS-Difal para 2022 e traz ainda mais dúvidas e incertezas aos contribuintes.
Somado aos dois cenários anteriores, tem-se, ainda, um terceiro ponto a ser observado, e que possibilita a interpretação de um terceiro cenário.
Isso porque, mesmo diante da expressa determinação de prazo para início de produção dos efeitos na Lei Complementar nº 190/2022, o fato de a sua sanção ter ocorrido já no exercício financeiro de 2022,torna inevitável que se observe o chamado princípio da anterioridade anual, que, expresso no artigo 150, inciso III, alínea “b”, da Constituição, veda a cobrança de tributos no mesmo exercício financeiro em que tenha sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou.
Pela regra constitucional, portanto, os efeitos da Lei Complementar nº 190/2022, pela sua sanção ter ocorrido no exercício financeiro de 2022, deveriam ter início apenas no ano de 2023, tendo em vista a necessidade de observar a anterioridade anual.
Resumindo a situação, os três cenários levam ao seguinte corredor manicomial jurídico-tributário: pela Constituição Federal, há fundamentos para que a cobrança ocorra apenas em 2023; para a Lei Complementar nº 190/2022, a cobrança iniciará em abril de 2022; e, para o Convênio ICMS nº 236/2021, a cobrança poderá se iniciar já neste mês.
Todos esses elementos indicam que, muito embora a Lei Complementar nº 190/2022 possa ter determinado um cenário a ser seguido, existem outros pontos que merecem atenção sobre o tema e podem, inclusive, fundamentar novas discussões na esfera judiciais.
Por tudo isso, é inegável que o conceito de “manicômio jurídico-tributário” do professor Alfredo Augusto Becker ainda se faz atual e ganha vida em situações como essa, uma vez que, diferentemente do que se esperava, a Lei Complementar nº 190/2022 e o Convênio ICMS nº 236/2021 apenas exemplificaram o que o professor quis dizer ao mencionar que “tão defeituosas costumam ser as leis tributárias que o contribuinte nunca está seguro das obrigações a cumprir e necessita manter uma dispendiosa equipe de técnicos especializados, para simplesmente saber quais as exigências do Fisco” [2].
Finalmente, além das lições (infelizmente, até certo ponto) atuais do professor Becker, o cenário do ICMS-Difal em 2022 traz mais dúvidas do que certezas e faz com que o contribuinte se sinta perdido em meio a tantos cenários; afinal, valerá a Constituição Federal? Ou estaremos diante de uma inversão da pirâmide de Kelsen em que a ordem de observância será um ato infralegal, uma lei complementar e, somente ao fim, a Constituição?
[1] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 7. ed. São Paulo: Noeses, 2018. p. 6.
[2] Ibidem. p. 9.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2022-jan-12/fernandes-icms-difal-manicomio-juridico-tributario-brasileiro